quinta-feira, outubro 26, 2006

MenteQueSentes - Quarta-Feira

A quarta-feira da semana
a quarta-feira da vida
a submissão plena
da querida paragem sem preguiça
apeadeiro fantasma
onde se inclinam o resto dos dias.

segunda-feira, outubro 23, 2006

MenteQueVives - Sonho no autocarro

Uma mota galopava pelo passeio com um capacete como condutor e uma saca a duplicar o motor. De uma porta em vidro saiu uma mulher entretida com a ideia de como havia de manter o novo penteado até ao dia seguinte. Dois homens cumprimentaram-se à moda antiga, boina ao ar, sorriso rasgado, mão comprometida e por perto, um miúdo de boné de lado ajeitou o leitor de mp3 no bolso e rapidamente apanhou uma chucha do chão.
Começou a chover. Por entre o som dos pingos sobressaiu um homem ao telemóvel que engelhou a cara, cobriu o aparelho com a outra mão e certamente terá ido procurar abrigo para continuar a conversa.
Já com o autocarro a abrandar ainda consegui perceber que no céu as nuvens pareciam querer fugir, e alguns raios de Sol quase rebentavam os meus olhos. Deixei-me ficar.
Fui o último a sair. Não porque fosse o que estava mais afastado da porta mas porque não acordei quando o autocarro parou. Quem me acordou de vez, foi um senhor de boina, que soube ainda quando comprava o bilhete, que vinha encontrar-se com os seus dois filhos. O mais velho já com dois descendentes, um com catorze, o outro ainda de berço. E a mais nova era dentista, mas segundo disse nem precisava sê-lo, porque casou com um empresário bem sucedido.
Só hoje de manhã percebi quem era o homem da mota, quando reparei em quem deixava o pão fresco à porta de casa. E tudo porque como sempre vinha de mota, mas desta vez sem o capacete. Cumprimentei-o pela primeira vez.

Miguel Alves

quarta-feira, outubro 18, 2006

MenteQueVives - A Escada

É a escada mais bonita que alguma vez vi. Larga o suficiente para não deixar que de uma extremidade à outra um sopro faça dançar a chama de uma vela. Branca como a neve antes de tocar o chão, mas rugosa como a pele de um avô. Tantos degraus quantos os desejos que plantamos em cada estrela. E generosa o suficiente para deixar que um corrimão a separe, como o risco ao meio de um penteado por sair à rua.
Quem a sobe não sabe, nem quer saber, quem a fez. Quem a desce acredita que a podia ter feito melhor e gostava de o poder dizer ao criador.

Miguel Alves

sexta-feira, outubro 13, 2006

quinta-feira, outubro 12, 2006

MenteQueSentes - Cartas

Essa burguesa
casada com o cérebro de uma lavandaria
o da gravata presa na braguilha
bigode desnorteado e choramingas.
A que rompe meias
por querer cruzar as pernas demais.
Vai de prédio em prédio
perguntar se alguém recebeu uma carta.
Quando chega a casa
reune à mesa um prato de sopa
e um recibo de compras para dispensar.
Quando o dito cujo chega
aprende rapidamente
como se comportar com um cliente abusivo
descalça os sapatos
e escreve mais uma carta.

Miguel Alves