sexta-feira, setembro 29, 2006

MenteQueVives - Canhoto (Não há vida que se conte inteira)

Quando se despediu só conseguiu acenar, o rosto não transpirou qualquer sorriso, tal era a preocupação em subir as escadas da carruagem sem soltar o saco para mais uma temporada.
Sentou-se no primeiro lugar vazio que encontrou ao lado da última pessoa que esperava encontrar. Por isso nem tentou mostrar pela janela o sorriso suspenso à entrada.
O rosto do amigo de há anos estava diferente, mas não o suficiente para alterar o desenrolar do diálogo tão característico entre os dois.
Ainda com o destino longe desfiaram o novelo que havia nascido em tantos anos de caminhos paralelos. E falaram das suas vidas como quem foi às compras e tenta mostrar ao outro que as suas foram as mais acertadas.
Com o comboio parado no último apeadeiro antes do seu destino e com o amigo do lado de fora a acenar e a sorrir, sentiu o telemóvel vibrar. Tinha uma mensagem nova: “Amor já estou em casa. Quando chegares ao quartel dá-me um toque. Desculpa não ter esperado pelo comboio partir antes de ir embora, mas apareceu a minha prima de França a chorar. Depois conto. Beijo.”
O comboio retomou a viagem. Quando esticava a perna para guardar o telemóvel encontrou no lugar vazio, deixado pelo amigo, o canhoto de uma viagem Paris-Lisboa.

Miguel Alves

MenteQueSentes - O primeiro sete

Depois das sete circunferências
em volta do mamilo
antes do gesto económico do adeus
enfim, choro
e peço àgua
ou sede ou vigilância.
Meu coração espera
para pecar e ser esquecido.
O desgosto branco nunca tido.

Miguel Alves

segunda-feira, setembro 25, 2006

MenteQueVives - Número

Agarrou no telefone e marcou o número que minutos antes não se lembrava ter.
Enquanto chamava a outra pessoa na linguagem das máquinas, coçava a cabeça com a mão livre. Gesto que imediatamente se transformou num leve pentear assim que do outro lado ouviu a voz feminina.
Não deixou entender se demorou a responder por não ter a certeza se era a voz certa ou por normal hesitação de quem tem de pedir e sabe que nunca vai poder retribuir.
Após o segundo “Estou?”, soltaram-se palavras já petrificadas pelo passar dos anos. Com a mão livre agora esquecida na face, tentou, tentou, tentou. Em vão. Não foi correspondido pelo número que minutos antes estava perdido na sua memória. Número que nem fazia parte da agenda electrónica, que estava tatuado numa folha de papel da agenda antiga, algures entre duas letras cúmplices de uma noite de peito cheio.
O número, o número. E a voz que esteve por trás, para ele e durante tanto tempo vazia, abandonada, fria? Essa voz só não deixou de responder porque decorou outros números, que nunca deixaram de ser números, mas decorados como se fossem nomes.
Miguel Alves

MenteQueSentes - Um dia feliz

Acordaram
com suaves ondas
de um mar temporário.
O Sol escavava a enseada
com sombras e vertigens.
E foi com coragem
que ele chegou
primeiro que a maré
para escrever
que este seria
um dia feliz.

Miguel Alves

sexta-feira, setembro 22, 2006

MenteQueProcuras - Dias disto e daquilo

- Já ouviste falar no dia Europeu sem carros?
- Sim, já.
- E não achas que é mais um como o dia dos Avós?
- Como assim?
- Coisas que ficam bem lembrar... e que ainda é preciso lembrar...

quarta-feira, setembro 20, 2006

MenteQueVives - Curriculum Vitae

Subia agora a rua da Igreja de mala a tiracolo e olhar empedrado na calçada portuguesa. Quando passava um carro só o vento lhe alterava por instantes o penteado, nada mais naquele corpo se alterava por mais objectos ou pessoas que figurassem naquela cena. Nada no corpo e na alma, dentro e fora estava estampada a raiva de mais uma entrevista de resultado vazio.
Só a segui por causa do rosto perfumado, pelo menos aos meus olhos, e pela presença de um rótulo, visível mal ouvi a sua voz.
Aquela atracção fez-me quase dar uma contribuição aos escuteiros que me acenavam calendários como moinhos de vento. Quase dei a contribuição, quase caí na calçada minada pelas primeiras chuvas de Outono, quase corri não fosse a BD vermelha dos semáforos, quase senti o cheiro a lavanda de um lavador de janelas, quase chamei um marroquino que entre relógios e óculos de sol amarrotava rosas vermelhas.
Quase que a contratara momentos antes, não fosse um parágrafo do seu Curriculum Vitae estar ainda apagado.

Miguel Alves

MenteQueSentes - Inscrição sobre as ondas

Mal fora iniciada a secreta viagem,
um deus me segredou que eu não iria só.

Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que o deus me segredou.

David Mourão Ferreira

MenteQueVes - Nascer contigo


sexta-feira, setembro 15, 2006

MenteQueVives - Pombos

Estava rodeado por pássaros. Pombos esganados, ombreando entre eles por um pouco de milho.
Eram grandes e pequenos. Uns com as patas marcadas, outros nem se apercebiam que tinham patas. Todos tinham asas, mas alguns pelo olhar davam a entender que não sabiam para quê. Pareceu-me ver um a executar aquele estranho ritual de acasalamento dos pombos, tão inoportuno, e que muitos pensam ser apenas uma tolice ou até mesmo uma qualquer disfunção.
Entretanto ouvi uma buzina atrás de mim, talvez até mais do que uma, mas porque foram excitadas ao mesmo tempo não me apercebi de quantas poderiam ser. O que é normal quando o sinal passa a verde e alguém como eu, está no primeiro lugar da fila a pensar em tudo menos no lugar onde vai estacionar.

Miguel Alves

MenteQueSentes - Ondulação

Do vento das coisas que não são divisíveis
e do tempo
esse tempo tão meu
tiro as forças gémeas dos medos
e levo os sentidos aos extremos.
Depois atrevo-me a atirar a pedra ao charco
reajo conforme a sua ondulação.

Miguel Alves

MenteQueVes - Esquecer as margens


quarta-feira, setembro 13, 2006

MenteQueVives - Pontapé

Um bocado de erva expulsa por uma fresta entre dois blocos de cimento, foi o que Alexandre viu mal abriu os olhos. Estava estatelado no ringue, abraçado pelos prédios do bairro Sete da cidade.

A surpresa de um calor, embrulhado com as férias da Páscoa, tinham-no empurrado juntamente com o resto do pessoal para mais uma dança de olhares pela cidade. Cada “olá” valia pontos e nenhum queria perder, nem que para isso tivessem de dizer um “olá” inesperado, dize-lo a uma rapariga desconhecida, sem que a audácia fosse percebida. Os quatro rapazes vestiam a amizade da melhor maneira, moldava-se a cada ocasião tal como uma camisa verde se veste L ou XL, não deixando de ser verde mas sobretudo não deixando de ser camisa. Se era para rir, riam todos. Se algum se embrulhava, havia um que descobria a ponta do laço. Se um descansava, os outros faziam a fogueira. Rituais que faziam o mundo ser enorme... mas não o suficiente.
Depois do incentivo ao ego, inocentemente dado pelas raparigas conhecidas ou quase, eram risos e contactos físicos que voavam das suas ideias, até desembocarem todos nas traseiras dos seu berços. Onde já de rostos guerreiros sonhavam com a mesma bola, numa encruzilhada de vontades, cores e imprevistos. As balizas geladas, agoniadas por tanto susto, tanto golo ou quase, assistiam a tudo tal como a mãe de Alexandre. Á espreita no canto de um dos olhos mais altos do prédio, D. Luz, também ela agoniada por não poder fazer nada às cartas feitas contas ou às dores feitas notas, rematadas na sua direcção. O que olhava lá em baixo, a chutar uma bola, era um gesto seu. Via nas linhas do campo a idade e nas pernas dos amigos de Alexandre os ciclos normais de uma vida.
Apesar da vontade de continuar, era preciso beber água e dar descanso ao corpo. Alexandre sabendo que não conseguia chegar primeiro à fonte, ficou no campo, deitado no cimento, à espera de algo fazer com que os seus olhos abrissem. E o pressentimento outrora não entendido, de uma lágrima a escorrer no rosto de sua mãe, fez Alexandre abrir os olhos e ver aquele bocado de erva que tal como ele tentava encontrar motivo para ter nascido.
Alexandre ficou no mesmo sítio e nem as vozes de seus amigos, nem mesmo o eco das mesmas faziam-no levantar. Até que os olhos desfocaram as ervas e engoliram um soluço de sua mãe. D. Luz permanecia acoitada pela transparência do vidro, julgando-se fazer parte da janela, nem que fosse aqueles frisos, tal como ela ignorados. A partir do momento que se afastam as cortinas e nasce o dia, ninguém se importa com aquilo que o contorna e segura. Pelo menos durante o tempo em que todos os dias são uma descoberta. Com a sua mãe a fazê-lo despertar para uma ressaca, Alexandre levantou-se, sacudiu o pó dos seus calções e deu um íntimo pontapé. Percebeu que já pouco havia a descobrir por ali. E pela primeira vez sentiu necessidade de perceber o que segurava tudo aquilo.

Miguel Alves

segunda-feira, setembro 11, 2006

MenteQueProcuras - 11

- Estive a ver um filme.
- Qual?
- Um sobre prédios e aviões.
- Como acabou?
- Olha nem sei se acabou.
- Hã?
- Epá nem sei quem eram os bons nem os maus...
- Mas será que agora só sabem fazer desses “filmes” sensacionalistas, sem ponta por onde se pegue?

MenteQueSentes - Porta porque se morre

Num corre, porque corre
enfastiado, porque sim
José tosse, porque tosse
afaga o cabelo, por causa do vento.
Vai pela rua dos porquês
de passo acelerado, porque chove.
Rodeado por uma sinfonia de apelos, porque vive
tentando descobrir a porta porque morre
que lhe foi dito estar ali, porque só pode estar ali
junto à casa de magia, porque esconde
a ternura dos olhares, porque ainda vivem
das pessoas curiosas, porque também perguntam
onde fica a porta porque se morre.

Miguel Alves

MenteQueVes - O brilho é o nosso tamanho

domingo, setembro 10, 2006

MenteQueVives - A Muralha

Aquela muralha de madeira não deixa que nada lá entre, só dela saiem disparos, coisas carregadas de intenção mas nem sempre certeiras. Rodeada por altas e elegantes montanhas com mil olhos pendurados, não treme quando delas se soltam labaredas ou sons nocturnos.
É aquela muralha de madeira que faz pessoas atravessar a estrada e deixar para trás minutos de ócio. É nela que guerreiros marcam as suas posições, à espera de vez para abastecer, pedir denúncias e planos de ataque.Hoje não fui lá comprar o jornal, mas já pus o dinheiro trocado no bolso das calças para amanhã não perder tempo. Porque nem sempre acordo a horas e não posso chegar outra vez à carreira de tiro, sem qualquer tipo de munições.

Miguel Alves

sexta-feira, setembro 08, 2006

MenteQueSentes - Canção

Tinha um cravo no meu balcão;
veio um rapaz e pediu-mo:
- mãe, dou-lho ou não?

Sentada, bordava um lenço de mão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?

Dei um cravo e dei um lenço,
só não dei o coração;
mas se o rapaz mo pedir
- mãe, dou-lho ou não?

Eugénio de Andrade

MenteQueProcuras - Mateus o caso?

- Vamos?
- Ok, bora lá!
- E o Mateus?
- Epá esqueci-me dele!
- E então?
- Deixa lá, pode ser que alguém lhe dê boleia!

quarta-feira, setembro 06, 2006

MenteQueSentes - Cartola

Essa pele que te transporta
e me toca.
Esse cabelo que contornas
e me anoitece.
Esses lábios que te levam
e me trazem palavras
e aquelas setas
que me deixam dentro de ti

Miguel Alves

MenteQueVives - A aldeia no monte

O monte onde se estica a aldeia parece ter sido levantado por duas mãos em perfeita sintonia, procurando-se de cotovelos apoiados no rio. As casas ora tristes ora sorrindo, acumulam pontos verdes entre elas, como crianças dispersas alegrando um jardim. E do ponto mais alto acena a mais branca, dizendo à linha de casas mais em baixo como é bom vê-las de lá, como é bom ver o rio brilhar sob os seus telhados.

Miguel Alves