quarta-feira, novembro 10, 2010

MenteQueVives - O miúdo do comboio

A marcha do comboio não enganava. Seguia em frente. Avançava.
Levava gente dentro. Alguém parecendo não estar satisfeito, caminhava. Seguia em frente. Avançava. E fazia-o para lá e para cá. Como se o limite de cada ponta do comboio fosse o inicio de mais uma caminhada.
Nas horas que durou a viagem não o vi cruzar olhares com ninguém. Fitava qualquer coisa dentro ou fora dele. E caminhava. Seguia em frente. Avançava.
Confesso que de ínicio me aborreceu. A mim e percebi que a todos os que se mantinham sentados. A seguir em frente. A avançar.
Desisti do desconforto assim que percebi a imunidade dele. Ele podia fazer aquilo. Talvez até devesse mesmo fazê-lo. Era miúdo e podia. Era miúdo e devia.
Devia seguir em frente. Devia avançar. Mesmo dentro do comboio e este a fazê-lo também.
Mesmo quando tinha de inverter a marcha parecendo voltar para trás, o comboio seguia em frente. Avançava. E ele também. Iludido, seguia em frente. Avançava.

sexta-feira, novembro 05, 2010

MenteQueVives - Cinema vagabundo

Quis ir ao cinema. Mesmo que para isso lhe bastasse descer um degrau, quis fazer o que os outros fazem. Os outros que não precisam descer o degrau. Os que descem na horizontal falsa do elevador.
Então antes de se mexer para o cinema, encostou bem o cabelo ao crânio, tirou um cachecol do saco de plástico e deixou no mármore a cama pronta até ao regresso.
Desceu o degrau.
Sentou-se novamente e esperou o ínicio do filme. E o filme iniciou-se tantas vezes que lhes perdeu a conta. Havia prémios a serem atribuidos aos actores e actrizes logo após as primeiras cenas. Ninguém mudava o guarda roupa. Ninguém tinha decorado os textos.
E ele pensou que chegava de sonhar com a vida real. Voltou a subir o degrau e realizou o seu filme. E para isso muito contribuiram, as letras das folhas de jornal que o cobriam.

quarta-feira, outubro 27, 2010

MenteQueVives - Na pose do dia

O dia dava sinais de dormência.
Fazia aquela pose, que julgo muitas vezes, fazer parar o tempo para que possa ser admirado.
O Sol destacava-se do cenário e fazia com que o rio empurrasse a luz dela contra ele.
A água fluía. E os olhares deles também. Pássaros voavam. E os pensamentos deles também.
Haviam passos a fazer-se ouvir. E os gestos deles escutavam.
À parte dos copos vazios, naquela mesa tudo transbordava alguma coisa.
E tudo havia por dentro. E tudo se criava por fora.

terça-feira, outubro 05, 2010

MenteQueSentes - Quando volto

Volto

quando falo contigo
e nao te vejo

quando reajo tarde
ao que me dizes

quando perco tudo
para pensar em cores

quando solto alguém
que não sobrevive
ao tom de voz
em falta
quando só tentas aparecer.

sexta-feira, setembro 24, 2010

MenteQueSentes - Respiro

E o Sol apareceu
todas as pessoas ficaram bonitas
o café trouxe o toque da tua pele
e tenho a certeza
que uma parte de ti me pertence
porque respiro.

quarta-feira, setembro 22, 2010

MenteQueSentes - Cinzento

Nunca gostei do cinzento!
Ainda que seja a cor onde agora te encontro
onde viajamos num pincel
que mistura o encontro e a saudade
e no regresso
nos deixa sempre nessa tonalidade por afirmar.

Nunca gostei do cinzento!
E porque agora
desespero por aprender a gostar
preciso que me ajudes a relembrar
como se põe uma mão
fora do comboio negro
e se toca na brancura das nuvens.

segunda-feira, agosto 09, 2010

MenteQueVives - A casa da rua

Saíram de casa e assumiram estar na rua.
Ignoraram ter morada. E mais do que isso esqueceram o caminho para casa.
Pularam nas primeiras poças, com o entusiasmo de quem não sabe para que servem as coisas, que nos fazem sentir bem. Escolheram frutas de árvores há muito esquecidas, que por isso conservavam o gozo natural de pecar. Lembraram jogos, dos tempos em que as apostas eram trocadas no intervalo da tabuada.
Quiseram viver para sempre. E fizeram-no. Ali na rua.
Debaixo dos astros e da roupa lavada.
Por cima dos passos e das sombras escondidas.

sexta-feira, julho 30, 2010

MenteQueSentes - Abraçar o mar

Seguia a estrada como um cavalo nocturno.
A galope nas perguntas. A trote nos impulsos.
Abrandou com o brilho da lua no mar, e dançou.
Pisou a areia, e amou.
Tocou o mar, e abraçou-o.
Conversou com a lua.
Durou uma hora
das que no final o fazem chorar.
Ela sorriu.
Acalmou-o.
-Sossega. Amanhã virá o Sol e com o ele a minha presença. O meu calor.

MenteQueSentes - Força que nunca seca

Há um pássaro feliz que canta.
Há uma flor, linda, que não desmaia.
E procuro mais.
Nesta aguarela sem tema
há mais pedaços de história
para comprovar
a força
do beijo que se evita
e que nunca seca.

quinta-feira, julho 29, 2010

MenteQueVives - Viagem de helicóptero ao mundo da fada e do poeta

Não eram só dois corpos na multidão. Eram também, tudo aquilo que se pode beber quando um olhar nos aquece ou uma palavra nos despe. E eram tudo isso a dobrar. Porque esticavam os umbigos, para dentro da circunferência que inventaram. Naquele momento que os vi, andavam livres. A correr e a rir. Pareceu-me até vê-los dançar ao ritmo de uma lua cheia.
Quando me viram, sorriram e mostraram-me os limites daquele mundo de fada e poeta. A fada distraiu-se com a voz de um miúdo e o poeta piscou-me o olho. Levantou parte da circunferência explicando-me que ambos estavam a preparar uma fuga. Sem dia nem hora marcada. Mas que não queriam deixar de planear.

terça-feira, julho 27, 2010

MenteQueSentes - Resposta ao conforto das tuas asas

Confesso
esta noite não vi a lua!
Tentei!
Tentei e tentei!
Mas o teu sorriso era maior.
Inquieto
partilhei o meu.
Amanhã saberemos o que conversaram
nem que tenhamos de pular de nuvem em nuvem
a nossa palavra
tem de estar no Universo.

terça-feira, maio 18, 2010

MenteQueSentes - Regresso a casa

O formato das nuvens era tantas vezes diferente
que preferia olhá-las, em vez de voltar a pisar o mesmo chão.

sábado, abril 24, 2010

MenteQueSentes - Aprender a comer

Temos os risos de cinema
no momento certo, os prolongados
e o corredor
onde distinguimos vidas
pelo tamanho da roupa.
Só no momento em que acertármos
na quantidade da nossa comida
poderemos receber visitas
por o nosso filme na sala
e ouvir risos
sem nos lembrarmos da roupa.

segunda-feira, abril 12, 2010

MenteQueVives - Terra natal

Enquanto fazia deslizar a pedra branca de forma a comer uma pedra preta, na jogada seguinte.
Enquanto marcava um sorriso no rosto, sem esforço.
Enquanto olhava o neto como quem sopra uma semente da palma da mão.
Sabia que tinha chegado à terra natal que descobriu esquina a esquina, cheiro a cheiro, reflexo a reflexo.
Chegara à terra natal de onde nunca quis verdadeiramente sair. Que quando o fez pediu perdão, como quem traiu a única pessoa capaz de prender o príncipio de tudo, com tudo aquilo que quisermos descobrir.

sábado, abril 03, 2010

MenteQueVives - Atracção dos corpos

Deu quatro passos apressados desde a porta de casa até ao limite do passeio. Fê-lo com a mão sobre a testa, como uma pala. Percebia-se a aflição em não deixar o passado tapar-lhe a visão.
Olhou a curva da estrada tantas vezes que parecia fazê-lo de forma contínua. Queria tanto ver o seu alguém aparecer que eram as horas que tinham de passar-lhe em frente ao rosto, e não este ir em busca dessa marca. Assim ficou, à espera.
Para mim a curva fez-se recta. As suas horas em mim ficaram feitas em segundos. Por cada um que passava era mais um reforço na traição que o meu carro, bocado inerte de mim, dava naquele desejo de ser a lei da física que punha por escrito a atracção dos corpos.

segunda-feira, março 22, 2010

MenteQueVives - Meu lugar

Nem sempre me sento no meu lugar. E sinceramente já perdi a conta das vezes que não o fiz. Mas as vezes que o cedi, essas lembro-me de todas. Foram três.
A primeira foi a uma senhora. Para agradecer leu-me a sina na palma da mão. Disse duas ou três coisas óbvias e outras tantas rebuscadas que nunca vou saber se foram certeiras. Esqueci-me. Esqueço sempre do que me querem impor.
A segunda vez foi a um cego. Agradeceu e pediu-me que descrevesse como estava o dia la fora. Perguntei-lhe se alguma vez tinha tido visão. Respondeu que sim. Disse-lhe, então, que estava igualmente bonito ao último dia que recorda e que nunca mais tinha havido melhor.
A terceira e última, foi a um senhor de bengala que abandonou o lugar antes da minha estação. Ao sair agradeceu e disse-me para nunca deixar de chamar "Meu lugar" ao lugar que escolho e que nunca devia cedê-lo, a quem nem sequer tenta encontrar o seu.

quarta-feira, fevereiro 24, 2010

MenteQueSentes - O brilho que deixas

O teu olhar deixa em mim a certeza

de que há brilho

capaz de transformar

os dias em viagens

e as noites em fortunas.

domingo, fevereiro 14, 2010

MenteQueSentes - Namorada

Nunca procurei no dicionário o significado da palavra namorada. Quando precisei de saber já tu estavas a meu lado. A tua essência é a única definição que sei. E duvido que haja outra melhor.

sexta-feira, janeiro 29, 2010

MenteQueVives - Medalha dourada

Caminhava sem saber que também procurava algo com os pontapés que dava no ar. Pequenos pontapés.


Talvez pelo som, talvez pelo brilho, talvez por um arrepio, notou naquele momento, que havia uma medalha dourada a querer entrar na sua vida. Guardou a medalha e um sorriso, não sabendo ainda que um dia não iam caber os dois dentro dela.


Passou o tempo. O suficiente para perceber que havia um leão marcado na medalha, que já estava marcado na sua pele. O relevo daquele momento, vivido anos antes, era já muito grande e não podia esperar mais. Não podia guardar mais aquele sorriso, ansioso por de uma vez por todas dar-lhe a mão e mostrar-lhe que era o signo da vida que aqueles pequenos pontapés tinham encontrado.




(Para a Bela e Hugo)

sábado, janeiro 23, 2010

MenteQueSentes - Gostar por defeito

Fosse como fosse
chegaria entre as suas pratas e pétalas
chegaria livre de um fim
poderia ser cúmplice e ser único
e mesmo assim
chegaria antes da hora
marcada pelos pulsos dos relógios.

Fosse como fosse
chegaria entre as suas pratas e pétalas
chegaria livre de um fim
poderia ser atacado de gaiolas ou janelas
e mesmo assim
não se esqueceria
que antes de chegar
por defeito iria gostar.

segunda-feira, janeiro 11, 2010

MenteQueSentes - Frutos

Preferia
que os teus lábios prendessem
como beijam as tuas mãos
assim haveriam frutos
que percorriam
o vazio do meu corpo
só para os molhar
em vez de os apanhares
já secos do chão.