quarta-feira, setembro 13, 2006

MenteQueVives - Pontapé

Um bocado de erva expulsa por uma fresta entre dois blocos de cimento, foi o que Alexandre viu mal abriu os olhos. Estava estatelado no ringue, abraçado pelos prédios do bairro Sete da cidade.

A surpresa de um calor, embrulhado com as férias da Páscoa, tinham-no empurrado juntamente com o resto do pessoal para mais uma dança de olhares pela cidade. Cada “olá” valia pontos e nenhum queria perder, nem que para isso tivessem de dizer um “olá” inesperado, dize-lo a uma rapariga desconhecida, sem que a audácia fosse percebida. Os quatro rapazes vestiam a amizade da melhor maneira, moldava-se a cada ocasião tal como uma camisa verde se veste L ou XL, não deixando de ser verde mas sobretudo não deixando de ser camisa. Se era para rir, riam todos. Se algum se embrulhava, havia um que descobria a ponta do laço. Se um descansava, os outros faziam a fogueira. Rituais que faziam o mundo ser enorme... mas não o suficiente.
Depois do incentivo ao ego, inocentemente dado pelas raparigas conhecidas ou quase, eram risos e contactos físicos que voavam das suas ideias, até desembocarem todos nas traseiras dos seu berços. Onde já de rostos guerreiros sonhavam com a mesma bola, numa encruzilhada de vontades, cores e imprevistos. As balizas geladas, agoniadas por tanto susto, tanto golo ou quase, assistiam a tudo tal como a mãe de Alexandre. Á espreita no canto de um dos olhos mais altos do prédio, D. Luz, também ela agoniada por não poder fazer nada às cartas feitas contas ou às dores feitas notas, rematadas na sua direcção. O que olhava lá em baixo, a chutar uma bola, era um gesto seu. Via nas linhas do campo a idade e nas pernas dos amigos de Alexandre os ciclos normais de uma vida.
Apesar da vontade de continuar, era preciso beber água e dar descanso ao corpo. Alexandre sabendo que não conseguia chegar primeiro à fonte, ficou no campo, deitado no cimento, à espera de algo fazer com que os seus olhos abrissem. E o pressentimento outrora não entendido, de uma lágrima a escorrer no rosto de sua mãe, fez Alexandre abrir os olhos e ver aquele bocado de erva que tal como ele tentava encontrar motivo para ter nascido.
Alexandre ficou no mesmo sítio e nem as vozes de seus amigos, nem mesmo o eco das mesmas faziam-no levantar. Até que os olhos desfocaram as ervas e engoliram um soluço de sua mãe. D. Luz permanecia acoitada pela transparência do vidro, julgando-se fazer parte da janela, nem que fosse aqueles frisos, tal como ela ignorados. A partir do momento que se afastam as cortinas e nasce o dia, ninguém se importa com aquilo que o contorna e segura. Pelo menos durante o tempo em que todos os dias são uma descoberta. Com a sua mãe a fazê-lo despertar para uma ressaca, Alexandre levantou-se, sacudiu o pó dos seus calções e deu um íntimo pontapé. Percebeu que já pouco havia a descobrir por ali. E pela primeira vez sentiu necessidade de perceber o que segurava tudo aquilo.

Miguel Alves

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